Concretismo no Brasil: música & design gráfico. Parte 1
A partir de uma pesquisa maior que realizo no momento (e da qual darei mais detalhes em breve), divulgo de antemão uma pequena antologia informal da música brasileira de atitude concretista e sua respectiva articulação no design gráfico (sobretudo por meio de capas e encartes de discos), partindo do fim dos anos 1950 até os anos 1970. Trata-se de uma série de posts organizada cronologicamente, cada um abordando um momento ou um artista específico desse rico diálogo entre música, poesia e design ocorrido nesse período.
No “Plano-piloto para poesia concreta”, manifesto de 1958 assinado por Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignatari, defende-se o poema que comunique a própria estrutura, para tanto valendo-se também do espaço gráfico como agente estrutural. Não se tratava, entretanto, de meramente transpor a poesia para o âmbito visual em detrimento do verbal e sonoro: o projeto afirmava-se como verbivocovisual: “que participa das vantagens da comunicação não verbal, sem abdicar das virtualidades da palavra”.
Poema do concretista Décio Pignatari, 1958
Elegendo como precursores artistas diversos como Maiakóvski, Mondrian, Ezra Pound, Max Bill, Webern, Stockhausen, e, no Brasil, Oswald de Andrade, Souzândrade e João Cabral de Melo Neto, o projeto abrangeu de forma sincrética a poesia, a música, as artes plásticas e o design. Sua marca permanece impressa no trabalho de artistas posteriores, seja comedidamente ou adotada com entusiasmo.
Em 1959, João Gilberto lança seu LP Chega de Saudade, que definiria a partir de então a bossa-nova. No ano seguinte, lança O amor, o sorriso e a flor. Esses álbuns contém, respectivamente, “Desafinado” e “Samba de uma nota só”, ambas de Tom Jobim e Newton Mendonça. Canções icônicas da bossa-nova, nas duas a letra é metalinguística, comunicando ludicamente a estrutura musical em si. O projeto gráfico dos dois álbuns ficou a cargo de Cesar Villela, designer responsável pelas capas do célebre selo Elenco. Abertamente influenciado por Mondrian e igualmente interessado nos cânones ordenadores do espaço visual (como a seção áurea), Cesar Villela, traduzindo graficamente a precisão e o intimismo da bossa-nova, ajudou a estabelecer a identidade visual desse movimento. Amostra do trabalho de César Villela como capista do selo Elenco
O impacto da bossa-nova foi imenso, e seu sucesso internacional sinalizou o momento de maturidade da música brasileira enquanto produção cultural de exportação – o que fora vislumbrado em 1924 pelo modernista Oswald de Andrade em seu “Manifesto da poesia Pau-Brasil” havia enfim se concretizado. Em pouco tempo, como aponta Augusto de Campos em “Boa palavra sobre música popular”, artigo de 1966, o estilo passaria de “influência do jazz” a influenciadora do jazz. A esse respeito, destacam-se os álbuns Jazz Samba, dos americanos Charlie Byrd e Stan Getz (1962), e Getz/Gilberto, de Stan Getz e João Gilberto, com participação de Tom Jobim (1964). Os dois álbuns obtiveram grande sucesso comercial internacionalmente.
Se a bossa-nova conquistou o exterior, não foi sem antes marcar profunda e duradouramente a produção musical brasileira que a sucedeu. Seus três principais desdobramentos na década de 1960, a canção de protesto, o iê-iê-iê (ainda que nesse caso a influência da bossa-nova seja tímida) e, por fim, a Tropicália, acabariam por definir boa parte dos rumos da música brasileira a partir de então – embora o diálogo entre essas três correntes, em geral, não tenha sido livre de polêmicas e atritos. Tudo isso será matéria para os próximos posts. Por ora, escutemos as duas canções de João Gilberto aqui mencionadas.
“Desafinado”, do álbum Getz/Gilberto, 1964
“Samba de uma nota só”, do álbum O amor, o sorriso e a flor, 1960